terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Ecos da Sonora - L

Uma descida às catacumbas arquetípicas dos faulknerianos indígenas, cujo pároco é o Antunes. Só narradores são quinze. Não sei se vale a pena ouvi-los todos.

Cap. Vardaman, pág. 83:

Vamos à cidade. A Dewey Dell diz que não o vendem porque pertence ao Pai Natal, e que ele o levou com ele até ao próximo Natal. Nessa altura vai aparecer outra vez na montra, a reluzir de ansiedade.
O pai e o Cash vêm a descer a encosta, mas o Jewel vai a caminho do estábulo. - Jewel - diz o pai. O Jewel não pára. - Aonde vais? - diz o pai. Mas o Jewel não pára. - Deixa aqui o cavalo - diz o pai. O Jewel pára e olha para o pai. Os olhos do Jewel parecem berlindes. - Deixa aqui o cavalo - diz o pai. - Vamos todos na carroça com a mãe, como ela queria.
Mas a minha mãe é um peixe. O Vernon riu. Ele estava lá.
- A mãe do Jewel é um cavalo - disse o Darl.
- Então a minha pode ser um peixe, não pode, Darl? - disse eu.
O Jewel é meu irmão.
- Então a minha vai ter de ser também um cavalo - disse eu.
- Porquê? - disse o Darl. - Se o teu pai é teu pai, por que é que a tua mãe tem de ser um cavalo só porque a do Jewel é?
- Por que é que tem de ser? - disse eu. Por que é que tem de ser, Darl?
O Darl é meu irmão.
- Então o que é que é a tua mãe, Darl? - disse eu.
- Não tenho nenhuma - disse o Darl. - Porque se tivesse, era foi. E se é foi, não poder ser é, pois não?
- Não - disse eu.
- Portanto, eu não sou - disse o Darl. - Ou sou?
- Não - disse eu.
Eu sou. O Darl é meu irmão.
- Mas tu és, Darl - disse eu.
- Eu sei - disse o Darl. Por isso é que não sou é. És é de mais para uma mulher parir.
O Cash leva na mão a caixa das ferramentas. O pai olha para ele. - Passo pelo Tull no regresso - diz o Cash. Para consertar o telhado do estábulo.
- Isso é uma falta de respeito - diz o pai. - É uma afronta descarada a ela e a mim.
- Quer obrigá-lo a voltar aqui para depois ter de as levar a pé até à casa do Tull - diz o Darl; a boca não pára de mastigar. Agora o pai faz a barba todos os dias porque a minha mãe é um peixe.
- Não está certo - diz o pai.
A Dewey Dell leva o embrulho na mão. E também a cesta com a merenda.
- O que é isso? - diz o pai.
- Os bolos de Mrs. Tull - diz a Dewey Dell, subindo para a carroça. - Ela pediu-me para lhos levar para a cidade.
- Não está certo - diz o pai. - É uma afronta à defunta.
Vai lá estar. Vai lá estar pelo Natal, diz ela, a brilhar nos carris. Ela diz que ele não vai vendê-lo a nenhum miúdo da cidade.

[Tese primeira do célebre ensaio Literatura para Totós:

"Desconfia dos textos que resistem ao teu entendimento, e em que tu, leitor empedernido, não consegues penetrar à segunda tentativa.
Dá-os ao desprezo. São merda que te querem impingir, coberta do chantilly do mercado."]