sábado, 4 de abril de 2015

Enquanto raia a manhã

«(...) Foi sobre a cama da barraca, em cima da colcha de retalhos, que um dia albergara o seu casamento, que Evangelina possuiu Adalberto, e ele a ela, num vice-versa. Amaram-se com a sofreguidão dos corpos desertos onde as gotas de prazer desaparecem pela epiderme abaixo. Vezes e vezes sem conta, antes que os líquidos surgissem e se mantivessem à superfície. Amaram-se como se fossem corvos, antes que algum deles tivesse tempo ou vontade de olhar sequer para a forma que tinha na frente. E só depois desse tempo, que lhes pareceu curto mas que fez cair a noite, como acontece subitamente na encosta norte, pararam para se ver. Num movimento lento de pudor, Evangelina procurou o vestido e saiu à porta onde as estrelas eram corridas a vento e nuvens.
Na sua frente, adormecida, estava Kika  Mas não estava sozinha: três espíritos vigiavam-na, estando a sua cabeça repousada no colo daquela que Evangelina já avistara antes. Quando ela se aproximou, sem medo, uma a uma, as sombras foram desaparecendo e a face delicada da menina foi descendo lentamente até ao chão. (...)»
(Possidónio Cachapa, Viagem ao Coração dos Pássaros, Marcador Editora, Jan 2015, pág.83)

É desta literatura que por aí se gasta e se consome, pelos vistos traduzida em vários países, sendo objecto de teses universitárias internacionais.. conforme reza a badana. Já em Nylon da Minha Aldeia (1997), Cachapa corria persistentes riscos de confundir fantasia infantil com imaginação criadora. Mas cultiva um respeito escrupuloso pela língua e a gramática dela, coisa rara que muito se encarece. Há no texto ritmos e harmonias e musicalidades de notar. Já outras armas de estilo do autor... nem nos comovem nem ensinam novidade. 
- "O maior escritor de prosa da sua geração" - opinou alguém no Expresso.
- "Possidónio Cachapa tem um universo" -arrisca o Público. E lá terá, o que não é bastante.
- "A arte de P. Cachapa consiste no modo como presentifica os seres e as coisas" - disse Urbano Tavares Rodrigues, enquanto se esperava que dissesse alguma coisa.
O que vale é que lá fora está um luar triunfante, a lua cheia pascal do Concílio de Niceia, a balizar o tempo da ressurreição. E a libertar o mísero leitor do prolongado enfado, da sonolência frustrante, e do cansaço inútil que as irrelevâncias deixam!