quarta-feira, 6 de maio de 2015

De cu para a lua!

Era uma vez uma menina que nasceu com um Stradivarius na mão. E um dia, tinha que ser, pôs o arco a deslizar nas cordas. O resultado fez levantar o salão!
Durante muito tempo tive o blogue Ana de Amesterdam como lugar de visita frequente e obrigatória. Pela cativante cristalinidade, o ritmo, a harmonia, a musicalidade e a aparente simplicidade da sua linguagem. Pelo rigor impiedoso e a força do seu discurso. Pela ousadia kamikaze e o desassombro de muitos dos seus textos.
A certa altura desleixei o exercício por razões de cansaço e dispersão, senão de algum enfado. De saturação até. Raras vezes é exercício ligeiro acompanhar um diário, muitas vezes persistente e enfadonho a ciscar no quotidiano. Porém, considerando a ganga auto-centrada e contentinha que anda por aí a alisar as penas do umbigo, ainda por cima ensacada como literatura, sempre é um júbilo encontrar profissionais do talento, num deserto de amadores e diletantes. 
Há tempos encontrei aqui a notícia da edição de uma colectânea de Ana Cássia Rebelo pela Quetzal. Depois apareceu também aliE eu não tinha como evitar levá-lo para casa, em face dos ecos de boa recepção.
A autora acabara por aceder à sugestão de João Pedro George, um homem do métier, que se encarregou da selecção dos textos, e os prefaciou, e terá apresentado o projecto à editora. Com este conjunto de ingredientes, é previsível o sucesso junto de quem lê.
Os textos seleccionados são de valor e natureza desigual. Li-os e reli-os no papel, e duas conclusões se me impuseram, a primeira inesperada e a segunda mais que lógica.
Em primeiro lugar, bons textos de blogue não são forçosamente bons textos impressos. O que significa que ler um blogue não é a mesma coisa que ler uma colectânea em livro. Ao conjunto impresso, que um blogue nunca é, falta consistência, densidade, conexão, dimensão e justificação. Um blogue é uma soma de partes. Uma colectânea é um todo.
Em segundo lugar, eles oscilam entre a natureza meramente autobiográfica, e a essência da auto-ficção. Quanto mais forem auto-ficção, mais qualidade transportam. Quanto mais são auto-biografia, mais padecem de irrelevância.
Em todo o caso, e em tais condições de génese, numa editora de referência, a primeira edição impressa da autora tem sucesso e reconhecimento garantido. Não é que a escritora o não mereça, bem ao contrário! Mas é o que se chama nascer de cu para a lua.
Entre o melhor: «Ana Paula, se soubesses o cansaço que trago no corpo não me olhavas assim, não me chamavas senhor doutor, não me perguntavas pelo dia no hospital, não trazias cafés queimados que me deixam gosto de cinza na boca. Sobretudo, Ana Paula, evitavas preencher a agenda até às nove da noite. Livravas-me do miúdo das oito horas, aquele cheio de mimo, que veio cá há pouco tempo por causa dum furúnculo no braço. O que o miúdo gritou. Lembras-te? A mãe, uma baixinha com focinho de porco, a estupidez espalhada pelo rosto suíno, soluçava em voz baixa, com o se o filho estivesse às portas da morte. Podias inventar-me uma doença, Ana Paula, qualquer coisa, talvez uma hiperplasia prostática. Tem um nome pomposo, eu sei, mas é um padecimento ligeiro, adequado aos homens da minha idade. "O senhor doutor encontra-se doente", havias de explicar com cortesia profissional aos pais, " não pode dar consultas nas próximas três semanas." E distribuías os miúdos pelos colegas do consultório. O miúdo do furúnculo podia ficar com o médico novo. Ainda deve ter paciência para aturar os rapazinhos que antecipam para a meninice a boçalidade da idade adulta. Se gostasses de mim, Ana Paula, pegavas-me na mão, levavas-me para tua casa, que cheira à alfazema dos pots-pourris que espalhas pelos móveis de pinho e pelas bancadas de moleano, abrias a cama, corrias os estores, ligavas a telefonia naquela estação que passa tangos e canções antigas. Depois, deitavas-te a meu lado e adormecíamos.»
Com esta Ana de Amsterdão, o Lobo Antunes das Crónicas deixou de produzi-las em exclusivo.
Entre o resto: «Estou com um buço espectacularmente escuro e grande, não tarda nada terei uma bigodaça farta e revirada, onde pingos glutinosos de caldo-verde poderão secar como estalactites. Voltei a roer as unhas até ao sabugo, ando com as polpas dos dedos inchadas e cheias de feridas. Tenho um molar estragado que, deixando um sabor fétido na boca, larga uma halitose potente. Cortei o cabelo tão curto, já o não consigo apanhar. Os meus pés, por causa das sabrinas baratas que uso sem meias, cheiram a chulé, e os meus sovacos, apesar do desodorizante, não aguentam até ao final do dia sem libertar um cheiro recozido de suor. Com os primeiros dias de sol, o meu melasma, apesar da furiosa aplicação de cremes despigmentantes, nota-se cada vez mais e, por causa do mioma, este mês, o meu fluxo menstrual voltou a ser diluvioso e inconveniente: largo golfadas de mênstruo coagulado, mas de um vermelho intenso, muito bonito.»
Só uma perplexidade me subsiste: dispondo duma arma destas, como se pode viver fechado nas paredes dum cerrado doméstico, como se não houvesse cá fora o mundo que aí está e gente nele. Sem olhar à volta e tomar posição, uma que seja?!