sábado, 5 de março de 2016

"Em Veneza, de noite", um sonho


Da contra-capa:
«A amizade, o desejo, a arte, a aventura de dois amigos que desafiam a passagem do tempo.
Num hotel e spa de luxo nos Alpes suíços, os amigos octogenários Fred Ballinger e Mick Boyle refletem sobre as suas vidas preenchidas e bem sucedidas, um como compositor e o outro como realizador de cinema, acompanhados por um conjunto de outros hóspedes excêntricos e interessantes, que incluem um lendário futebolista sul-americano, um famoso ator californiano e uma Miss Universo reinante. Ballinger está simplesmente a desfrutar a reforma, mas Boyle encontra-se a trabalhar com cinco argumentistas no seu último filme, que espera vir a ser a sua obra-prima.»
O espaço, e a fauna dele, evocam a Montanha Mágica de Thomas Mann, mas felizmente nada têm que ver com ela. E o livrinho, editado pela Jacarandá, é por várias razões uma pequena pérola, em tradução irrepreensível de Rossana Appolloni. Apresenta 75 peripécias, (episódios?, capítulos?) de dimensão muito variada mas curta, com um claro fio de ligação. Constituem uma ficção narrativa a que ninguém chama romance, nem novela, conforme agora se usa na banca das pepineiras. É literatura surpreendente e pura, melhor será visitá-la. O que fica aqui é um simples amuse-bouche.

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Em Veneza, de noite
Esporádicas e irregulares, implodidas e debilitadas, como se viessem do fundo remoto do mar ou da consciência, surgem, de vez em quando, breves notas de viola.
O que se vê agora é como se fosse uma visão.
Uma belíssima visão: a praça de São Marcos deserta com a maré alta. Imensa, com os pórticos e os edifícios inesquecíveis e um lago quadrado a lamber todas as colunas.
Uma passarela sobre-elevada, estreita e comprida, atravessa a praça para permitir a passagem. Mas por agora não está lá ninguém.
Depois, na noite desta cidade misteriosa por definição, ao fundo da estreita passarela, aparece Fred Ballinger.
Caminha a passos curtos, cansados e vulneráveis, como todas as pessoas de idade.
Fred levanta o olhar e avista, do lado oposto, um imponente ser feminino que avança na sua direção. Estes únicos seres humanos caminham nesta Veneza irregular e alagada. Estão agora mais próximos, prestes a cruzar-se, e Fred, com evidente admiração, concentra-se na mulher: tem um metro e oitenta e cinco. De uma beleza impossível, cabelos pretos e olhos verdes, a ponto de parecer irreal, veste um fato de banho e uma faixa oblíqua que tem escrito «Miss Universo».
Ela avança ao longo da passarela com aquele caminhar desumano das top model durante um desfile importante. Estão prestes a cruzar-se. Mas a passarela tem um metro de largura, portanto ambos se desviam para a beira de modo a permitir a passagem recíproca sem acabarem na água. Como era de esperar, tocam-se. O florido decote de Miss Universo desliza nos ténues peitorais de Fred Ballinger.
Ele olha para ela de baixo, como se estivesse a examinar uma tragédia benigna.
Ela, frígida como todas as misses, tem o olhar perdido no vazio e não presta atenção ao ambíguo e fugaz toque do seu perfeito corpo contra o de Fred.
Superado o risco de acidente, cada um segue o seu caminho. A miss, de costas, afasta-se balançando as ancas à luz da lua cheia, circundada pela massa de água, como num discutível sonho de Dolce & Gabbana
Fred continua ao longo da passarela e começa a ter medo, e tem motivos para isso: a água está a subir repentinamente. Inunda a passarela, envolve-lhe os pés, depois os tornozelos, os joelhos.
Fred tenta andar mais depressa, mas é velho e a água opõe-lhe resistência. Vira-se sufocado e grita um nome, como quem pede ajuda à Miss Universo.
- Melanie, Melanie!
Mas a miss Universo agora já não existe, como se se tivesse volatilizado.
Fred continua um pouco, a água chegou-lhe ao peito, agora ao pescoço, ao queixo, está em pânico, estrangula uma nota quando, felizmente...
(Continua)