domingo, 23 de outubro de 2016

Lavar a honra

Esquecendo aqui os Cem Anos de Solidão, de todos os trabalhos produzidos por este mestre colombiano de narradores é o que mais me toca enquanto leitor. O realismo mágico de há décadas ainda anda por aqui. E ainda hoje é um grande prazer lê-lo.
A devolução à mãe duma esposa que não estava virgem na noite de núpcias é a peripécia essencial. Santiago Nasar, membro duma comunidade muçulmana há muito integrada na Colômbia, é tomado como culpado, e cortado às postas por dois irmãos da noiva, Angela Vicário. Para lavar a honra.
Personagem marcante e curiosa, "Bayardo San Román, o homem que devolveu a esposa, tinha vindo pela primeira vez à vila em Agosto do ano anterior: seis meses antes do casamento. Chegou no barco semanal com uns alforges guarnecidos de prata a dar com as fivelas da correia e as argolas das botinas. Andava pelos trinta anos, mas muito bem disfarçados, pois tinha cintura fina de novilheiro, os olhos dourados, e a pele curtida a fogo lento pelo salitre."
O tempo da narrativa não vai além duma noite. E o melhor é dar a palavra ao narrador:
«Durante anos não conseguimos falar de outra coisa. O nosso comportamento diário, até então dominado por tantos hábitos lineares, começara subitamente a girar à volta duma mesma ansiedade comum. Surpreendiam-nos os galos do amanhecer quando tentávamos ordenar os inúmeros acontecimentos fortuitos encadeados que tinham tornado possível o absurdo, e era evidente que o não fazíamos por um empenho de esclarecer mistérios, mas porque nenhum de nós podia continuar a viver sem saber exactamente qual o sítio e a missão que lhe designara a fatalidade.
(...) Cristo Bedoya, que chegou a ser um cirurgião notável, não conseguiu explicar a  si próprio por que cedeu ao impulso de esperar duas horas em casa dos avós até o bispo chegar, em vez de ir descansar para casa dos pais, que ficaram à sua espera até ao romper do dia, para avisá-lo. (...) Hortensia Baute, cuja única participação foi ter visto manchadas de sangue as facas que ainda estavam limpas, sentiu-se tão afectada pela alucinação, que caiu numa crise de penitência e um dia não conseguiu suportá-la e saiu em pêlo para a rua. Flora Miguel, a noiva de Santiago Nasar, fugiu por despeito com um tenente do Serviço de Fronteiras que a prostituiu entre os seringueiros de Vichada. Aura Villeros, a comadre que ajudara a nascer três gerações, sofreu um espasmo da bexiga quando lhe deram a notícia, e até ao dia da morte necessitou de sonda para urinar. D. Rogelio de la Flor, o bom do marido de Clotilde Armenta, que era um prodígio de vitalidade aos 86 anos, levantou-se pela última vez para ver como despedaçavam Santiago Nasar contra a porta fechada de sua casa, e não sobreviveu à comoção. (...)»