segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Nobel

Bons tempos estes, para a literatura, quando os nomes dos autores apareciam minúsculos na capa, comparados com o título das obras! Sinal de que não havia as inversões e os equívocos que depois vieram!
Esta obra do mestre Saramago não é um concentrado de Literatura, porque não há disso. Mas está nela tudo quanto prenuncia um tempo áureo e único das letras portuguesas. Nos finais de 1975 era Saramago um jornalista da direcção do DN. E essa condição veio opô-lo a um grupo de colegas jornalistas que o acusavam de estalinismo, provavelmente com alguma razão. Saramago demitiu-se e abandonou a direcção do DN. Passou uns tempos no Lavre, ouviu o povo camponês e produziu esta obra, que dedicou a Isabel da Nóbrega.
A obra contém o substrato (ideário e um modo narrativo novo, à maneira das antigas narrativas orais de serão) donde sairiam os romances inesquecíveis com que ganhou o Nobel: Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra, a História do Cerco de Lisboa, a Viagem a Portugal, O Evangelho Segundo Jesus Cristo e esse portento do Ensaio Sobre a Cegueira. A par com meia dúzia de romances de António Lobo Antunes, que apareceram de rajada, fulgurantes e inovadores - Os Cus de Judas, Memória de Elefante, Explicação dos Pássaros, As Naus, O Esplendor de Portugal, Fado Alexandrino - ambos puseram a Europa inteira a ler-nos, coisa que antes nunca tinha acontecido nem voltaria a acontecer.

«(...) Um povo que se lava é um povo que não trabalha, talvez nas cidades, enfim, não digo que não, mas aqui, no latifúndio, vai contratado por três ou quatro semanas para longe de casa, e meses até, se assim convier a Alberto, e é ponto de honra e de homem que durante todo o tempo do contrato se não lave nem cara nem mãos, nem a barba se corte. E se o fizer, hipótese ingénua de tão improvável, pode contar com a troça dos patrões e dos próprios companheiros. É esse o luxo da época, gloriarem-se os sofredores do seu sofrimento, os escravos da escravidão. É preciso que este bicho da terra seja bicho mesmo, que de manhã some a remela da noite à remela das noites, que o sujo das mãos, da cara, dos sovacos, das virilhas, dos pés, do buraco do corpo, seja o halo glorioso do trabalho no latifúndio, é preciso que o homem esteja abaixo do animal, que esse, para se limpar, lambe-se, é preciso que o homem se degrade para que não se respeite a si próprio nem aos seus próximos.
E mais. Gabam-se os trabalhadores das pontadas que apanharam nos trabalhos de arroteia. Cada uma delas é medalha para vanglórias de taberna, entre o casco e o copo, Já apanhei tantas ou tantas pontadas a arrotear para Berto e Humberto. Esses é que eram os trabalhadores bons, os que, em tempo de chicote, mostrariam envaidecidos os vergões encarnados, e se sangrarem melhor ainda, gabarolas iguais ao rebotalho das cidades que presumiam de virilidade tanto maior quanto mais cavalos duros ou cancros moles adquirissem no comércio da cama alugada. Ah, povo conservado na banha ou no mel da ignorância, que nunca te faltaram ofensores. E trabalha, mata-te a trabalhar, rebenta se for preciso, que assim deixarás boa lembrança no feitor e no patrão, ai de ti se ganhas fama de malandro, nunca mais tens quem te queira. Podes ir por-te às portas da tabernas, com os teus companheiros de desfortuna, eles próprios te hão-de desprezar, e o feitor, ou o patrão, se lhe deu para isso, olhará para ti com nojo e tu só ficarás sem trabalho, para aprenderes. Que os outros decoraram a lição, vão matar-se todos os dias no latifúndio, e quando tu chegares a casa, se casa isso é, com que cara vais dizer que não arranjaste trabalho, que os outros sim, mas tu não. Emenda-te, se ainda vais a tempo, jura que já tiveste vinte pontadas, crucifica-te, estende o braço para a sangria, abre as veias e diz, Este é o meu sangue, bebei, esta é a minha carne, comei, esta é a minha vida, tomai-a, com a bênção da igreja, a continência à bandeira, o desfile das tropas, a entrega das credenciais, o diploma da universidade, façam-se em mim as vossas vontades, assim na terra como nos céus. (...)»