domingo, 1 de janeiro de 2017

Doze sultanas, já que passas não há!

«O Mendes, sempre com aqueles casacos de feira, de napa, castanhos ou pretos, as mangas arregaçadas até metade do antebraço, os trejeitos da boca, as frases mal escolhidas, eram como se apedrejasse alguém, e aquela maneira de falar, da rua, em que se comem vogais e se acentua os ésses no final das palavras. O Mendes, que conta anedotas sobre pretos, mulheres, alentejanos, que chega ao pé de nós e diz: um inglês, um francês e um português entraram num bar, e nós reviramos os olhos, e depois ele  fala do Benfica, da cegueira escandalosa dos árbitros. O Mendes, sempre com a barba muito bem feita, um bocadinho de papel higiénico na curva do maxilar, um bocadinho de papel higiénico que serviu para estancar o sangue de um pequeno corte, as patilhas demasiado cortadas, o cheiro a after-shave e a colónia comprada na drogaria. O Mendes, quem diria?

Quando cheguei a casa subi ao terraço. Olhei lá para baixo, fechei os olhos e inspirei profundamente. Estava calmo, mas sentia-me muito cansado, estava na altura de desistir. Tinha as pernas dormentes, tão dormentes como a paisagem, a vida, essas coisas. Debrucei-me um pouco. A frase da Samadhi voltou a soar na minha cabeça. Quando ela encostou a porta agarrei-a pelos ombros e repeti: o Mendes? Ela irritou-se e disse: O Mendes tem muita coisa boa, se não tivesse, a tua mulher não se teria metido na cama dele durante mais de dois anos. E isto agora fazia-me um eco enorme dentro da cabeça: durante mais de dois anos, durante mais de dois anos, durante mais de dois anos.
Os carros lá em baixo, o meu cansaço a escorrer pelo corpo, pelos braços, a encravar-se nas unhas, um cansaço indolente, parecia um gato a roçar-se nas pernas de uma velha, e lá em baixo as pessoas pequeninas, os carros pequeninos, a vida pequenina, tudo a passear o tédio pelas ruas, e o eco, durante mais de dois anos, durante mais de dois anos, durante mais de dois anos. É agora, pensei enquanto me preparava para subir para o murete do terraço.
E optei pela frase mais chavão de todas: Adeus, mundo cruel.
Não havia maneira mais torpe de morrer. Até naquele momento patético eu era absolutamente ridículo.
Repeti: Adeus, mundo cruel.
O Mendes, com o seu casaco de napa, mangas arregaçadas até meio do antebraço, não diria melhor.»