segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Memorial

Releio o Memorial do Convento. E é verdade o que Saramago disse: 80% da literatura é linguagem.
Era. Porque hoje ninguém sabe o que isso seja, além da imagem duma ignorância negra. É o que o mercado fez dela.

«(...) Nas janelas só há mulheres, é esse o costume. Os penitentes vão de grilhões enrolados às pernas, ou suportam sobre os ombros grossas barras de ferro, passando por cima delas os braços como crucificados, ou desferem para as costas chicotadas com as disciplinas, feitas de cordões em cujas pontas estão presas bolas de cera dura, armadas de cacos de vidro, e estes que assim se flagelam é que são o melhor da festa porque exibem verdadeiro sangue que lhes corre da lombeira, e clamam estrepitosamente, tanto pelos motivos que a dor lhes dá como de óbvio prazer, que não compreenderíamos se não soubéssemos que alguns têm os seus amores à janela e vão na procissão menos por causa da salvação da alma do que por passados ou prometidos gostos do corpo.
Presas no alto gorro ou na própria disciplina, levam fitinhas às cores, cada um a sua, e se a mulher eleita que à janela anseia de angústia, de piedade pelo amador sofredor, se não também de gozo a que só muito mais tarde aprenderemos a chamar sádico, não souber, pela fisionomia ou pelo vulto, reconhecer o amante na confusão dos penitentes, dos pendões, do povinho derramado em pavores e súplicas, do vozear das ladaínhas, do bambear desacertado dos pálios, dos cabeceamentos bruscos das imagens, adivinhará ao menos pela fitinha cor-de-rosa, ou verde, ou amarela, lilás, se não vermelha ou cor do céu, é aquele o seu homem e servidor, que lhe está dedicando a vergastada violenta e que, não podendo falar, berra como o toiro em cio, mas se às mais mulheres da rua, e a ela própria, pareceu que faltou vigor ao braço do penitente, ou que a vergastada foi em jeito de não abrir lanho na pele e rasgões que cá de cima se vejam, então levanta-se do coro feminil grande assuada, e possessas, frenéticas, as mulheres reclamam força no braço, querem ouvir o estralejar dos rabos do chicote, que o sangue corra como correu o do Divino Salvador, enquanto latejam por baixo das redondas saias, e apertam e abrem as coxas segundo o ritmo da excitação e do seu adiantamento. (...)»
O que hoje se passa nas Filipinas tem antecedentes muito antigos, no Corpo de Deus lisboeta.