domingo, 14 de janeiro de 2018

Eu bem te digo, António!

Atão e o onde, o quando, o como, o porquê e com que fim?!

"Deus sabe que eu não queria. Deus conhece o íntimo da minha carne, a razão dos meus pecados e o labirinto das minhas intenções. Deus acompanha-me desde a Índia, onde o meu pai, de bivaque, trabalhava de estafeta na alfândega do porto e a minha mãe cozinhava no telheiro, sob a chuva, a tartaruga do  almoço, e continuou a acompanhar-me pelos anos fora dobrando as palmeiras da praia, nas monções, com um só dedo do seu vento e baixando em pleno dia numa noite absoluta que transtornava as iguanas e as mulheres.
Deus trouxe-me consigo para Moçambique como criado dum marquês que regressava ao reyno numa escuna de velas enfunadas pelos leques das aias, pesada de quinquilharias orientais vendidas depois nos túneis do metropolitano por gurus esqueléticos, acocorados no chão ao lado dum pífaro e de uma caixinha de mortalhas. Na véspera da partida de Lourenço Marques adormeci no quarto de musseque duma chinesa que conhecera duas horas antes, levitando em passinhos curtos numa avenida da Baixa, e ao acordar vi através do seu sorriso mudo, pela janela, os  leques das aias que acenavam no horizonte e um mandarim centenário ajoelhado numa almofada a almoçar carochas duma tigela de Barcelos. (...) O único branco do bairro vendia bíblias, postais eróticos e gira-discos no porta-a-porta da cidade, chamava-se Fernão Mendes Pinto, possuía uma cabana na areia atulhada de refugos de equinócios e recordações da Malásia, sentava-se à beira de água a comover-se com os crepúsculos, fez-me sócio no comércio de evangelhos e uma tarde, ao chegar mais cedo ao musseque, encontrei-o, nu e repulsivo, em cima da rãzita transparente da chinesa que sorria para o tecto a sua doçura inalterável. (...)
Com as automotoras chegavam sem cessar políticos, calceteiros, presidentes de câmara e cobradores de impostos. (...) Uma súbita aldeia de moradias, supermercados e cinemas alisava as dunas e avançava terraços pala mata. Arrumaram o padrão, limpo de folhas, na cave dum museu, à sombra de bustos de cera de exploradores memoráveis. Instalaram um clube naval para comodoros paranóicos num lugre abandonado, depois de o libertarem dos esqueletos de calafates que se desfaziam em pó mal o piaçaba lhes tocava. (...)
Os circos deram em desembarcar de vagões de mercadorias, e os equilibristas armavam as redes em praças roubadas aos eucaliptos e ao capim. De tempos a tempos o governador, acolitado de oficiais bigodudos, visitava os quarteirões pobres prometendo esgotos, e partia com um cabrito nos braços agaloados, ao som do hino, num automóvel gigantesco com um par de bandeirinhas no capot."
[AS NAUS]